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A TROCA
Foi em Buique que Lampião soube que Moreno havia largado o quartel e que estava residindo em Matinha.
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Por essa época, Virgulino já era muito temido devido sua natureza cruel. Também não era para menos, em toda a rota por ele trilhada, não só ia deixando perdas materiais como luto, desolação e dores. O caminho que seguira para surpreender Moreno e Luísa fora a linha da divisa. Por essa vereda, que separava Pernambuco de Alagoas, certos tropeiros que iam adiante do bando alertavam os moradores com a notícia alarmante. "É bom que se escondam, gente!", diziam cheios de pressa. "Lampião e sua tropa vêm em direção a Matinha!" Os tropeiros tinham razão. O destino do bando era de fato Matinha de Água Branca, localidade escolhida pelo ex-cangaceiro Moreno para se esconder da vingança. Já era do conhecimento dos catingueiros as insatisfações de Lampião por ter ficado sem o melhor de seus homens. Sabiam também que o que mais concorrera para que Virgulino dedicasse tanto ódio ao cearense foi haver este aderido às forças legais. Largar o cangaço, para a concepção dos bandoleiros da época, já se constituia em ato desonroso, porém nada se igualava a unir-se aos oficiais do governo. Ao tornar-se soldado o cearense havia assinado a própria sentença de morte.
Naquela tarde em Matinha, Moreno e Luísa nem suspeitavam que estavam prestes a viver o mais sangrento dos dramas. O cearense havia acabado de chegar do roçado, guardava as enxadas, quando ouviu um violento trotar no terreiro. Foi à porta e com surpresa avistou a comitiva. Lampião estava à frente do bando. Moreno, em desespero, procurou com o olhar a esposa e logo intuiram que a hora da vingança havia chegado. O ano era mil novecentos e trinta e seis. Fevereiro. Dia treze.
Embora Lampião fosse um excelente estratega, para tomar a residência e subjugar o casal nem se importara em fazer maiores estudos. Encostam os cavalos na varanda e desmontam. Daquela vez, além do lugar-tenente Chumbinho, o bando fora reforçado por três cangaceiros de inteira confiabilidade: José Sereno, Volta Seca e Cascavel. Havia também um cantador que levava o nome de Alcibites que viera por mercê de licença especial concedida pelo próprio Virgulino com a finalidade precípua de testemunhar a vingança. Seria o cronista do fato. Levaria às aldeias a notícia de como se processavam as leis no sertão.
Moreno, na mocidade, havia sido um cangaceiro leal. Nessa época, ao incursionar com o bando, quando havia confronto com a polícia, os colegas sempre o queriam como parceiro nas brigas. Mas, ao largar o grupo e sentar praça fora como se apunhalasse os antigos companheiros de luta. Jamais conseguiram esquecer. E essa afronta tinha nome. Chamavam-na "perfídia". Julgavam-na uma ingratidão sem sentido que somente expiraria com a morte do traidor. Por isso, quando receberam a notícia de que Moreno havia largado os quartéis para viver da agricultura e que estava residindo em Matinha, puseram-se em pé de guerra. Sob as ordens de Lampião, reuniram-se para a execução da vingança. No caminho, o cangaceiro Mergulhão já dava mostras da estranha alegria que aquela missão ensejava. Arrotava gabolices. Por ser um galhofeiro incorrigível, cantava os seguintes versos que demonstravam a medonha disposição própria dos bandoleiros da época:
Aprendi a andar rasteiro
A comer de mês em mês
Beber água por semestre
Dormir no ano uma vez.
Atirar em um soldado
E derribar dezesseis.
A pequena moradia estava situada na imensidão da catinga. Rodeando-a havia touceiras ressequidas de milho, resquícios de uma lavoura meã, emurchecidas devido ao ardor excessivo do sol. Ao ver o bando surgir, o casal em um movimento automático fecha portas e janelas. Moreno puxa Luísa e insiste em que ela se esconda nas reentrâncias que existem sob o paiol de feijão. Luísa não obedece e agarra-se ainda mais ao marido. Em um jirau que um dia construíra no quarto contíguo à cozinha, Moreno tateia. Leva a mão por entre as varas até encontrar seu fuzil.
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Lá fora, a cabroeira se agita. Faz alguns disparos nas telhas e ri numa anarquia sem freios. O objetivo da gritaria e da fanfarronice desenfreada é a pressão psicológica. Acompanhado da esposa, Moreno observa toda a movimentação através de uma fresta que dá para o terreiro da frente. Dali ele já poderia ter baleado muitos, por ser bom de mira. No entanto, ao perceber que se desencadeasse um tiroteio exporia inexoravelmente a esposa, baixa a arma e pensa numa melhor solução. Moreno sempre fora apaixonado pela terna companheira. Para atender seus pedidos é que abdicara das lutas. Ao largar o cangaço afrontara Lampião, mas isto o fizera como uma oferenda à amada. Um agrado. Um mimo por sua afeição de amor. Luísa era sua razão de viver, e sempre soubera de seu maior sonho acalantado: uma existência normal.
No terreiro, a cabroeira se espalha. Da fresta, o casal vê quando o lugar-tenente Chumbinho aproxima-se e faz alguns disparos na porta. O olhar de Moreno vai de seu fuzil à esposa. Sente o forte apelo da arma, mas não cede. Naquele transe, expor a companheira é o que mais o angustia. Salvá-la torna-se seu desejo premente. É nessa hora que lhe chega a ideia de uma troca. Oferecer sua vida pela integridade física de Luísa. Entregar-se sem resistência se Virgulino lhe assegurasse a integridade física da amada. Não comunica essa resolução à mulher. Ele sabia que valente como era, a esposa optaria por lutar até o fim ao seu lado. Mas como forçar Lampião a ouví-lo? Com a idéia da negociação no pensamento, o cearense perscruta os arredores e vê José Sereno, um antigo companheiro de bando, bem ao lado do velho chiqueiro de porcos. Um pouco à frente, a uns dois metros de Volta Seca, bem no centro do terreiro, encontram-se Quinta-Feira e Lampião! Ao reconhecer Lampião, Moreno assesta-lhe o fuzil:
– Lampião, não se mexa... Não se mexa, Lampião!
Pai-velho, um cangaceiro que entrara para o bando aos setenta anos de idade, por não intuir que Moreno só queria forçar uma negociação com Lampião, com ares benevolentes, interpela:
– Moreno,... Aqui é Pai-velho, meu filho! Deixe de besteira e largue a arma! Não vê que agindo dessa maneira só vexará Virgulino! Pense, cristão!
Moreno não liga para a intermediação de Pai-velho. Grita outra vez para Virgulino. Faz-lhe ver que o leva sob mira, mas que antes de dar no gatilho pretende negociar rendição. Entregar-se-ia - gritara mais forte ainda - se Virgulino desse a palavra de que ninguém iria molestar a companheira. Ao ouvir a exigência do rapaz, e sabendo de sua fama no manejo do fuzil, Virgulino paralisa-se. Pondera. Olha para os companheiros que parecem petrificados e vê que alguns chegam até a se emocionar com o teor da proposta. Lampião aceitaria ou não a permuta? Contentar-se-ia o rancoroso comandante somente com a morte do cearense? Pai-velho, cujos conselhos sempre foram obedecidos, faz gestos para Virgulino. Sussurra que é de bom augúrio aceitar, porque se trata de “uma fineza de amor”.
Virgulino, encurralado, aquilata o parecer do ancião e vê-se inclinado a não desobedecer seu conselho. Até porque, por se encontrar em uma situação vulnerável, outra saída não existe. Aquele gesto heroico, o dar-se em troca da companheira, faz com que a natureza rancorosa de Virgulino amenize-se ao ponto de se tornar razoável. Passados alguns segundos, para alívio da cabroeira, Virgulino balança afirmativamente a cabeça. Com a anuência formal de seu comandante, o cangaceiro José Sereno grita para o interior da residência e o acordo é imediatamente selado. Só então, Moreno, na certeza de que honrariam o contrato firmado, abre a porta e atravessa a soleira. Ele tinha certeza de que custodiariam Luísa porque no sertão a palavra dada reveste-se da santidade das leis. Solta o fuzil, entrega Luísa a Pai-velho, e deixa-se aprisionar.
Daquele instante em diante começaria um verdadeiro calvário para Moreno. Fazem-no entrar na cozinha e o rodeiam. Os rifles estão perigosamente apontados. Chamam-no de traidor. Virgulino afasta seus cabras e senta-se ao lado do homem que em sua concepção lhe enganara. Cara a cara, questiona-o. Deseja saber o paradeiro de outros soldados, inimigos ferrenhos do bando. Depois de minuciosamente interrogado, Moreno é levado ao terreiro, onde o amarram em frente a uma fogueira acesa pelo cantador Alcibites.
Virgulino escolheria arma de fogo ou punhal? A dúvida de alguns residia no fato de que para traidores contumazes o chefe agia com aterradora maldade. Dava preferência à frieza de seu alongado trinchete. Chegava a ser meticuloso com esse instrumento: escolhia certo lugar sob a clavícula da vítima para chegar ao coração em um lance calculado.
No interior da residência, Virgulino posterga. Quer ter uma última conversa com os principais de seu bando. Entre os assuntos discutidos, a questão prioritária é o que fazer com Luísa. Que ninguém molestaria a mulher, isso já fora coisa acertada. Havia dado a palavra, e sua palavra era lei. Zé Sereno, Volta Seca e Cascavel escutam-no com atenção. Por fim, ecos de uma religiosidade distante fazem Virgulino emitir seu mandamento final: deixá-la-iam em Matinha para que cuidasse das reverências sagradas e do sepultamento do morto.
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No terreiro, alguns cangaceiros aguardam. Por se encontrarem sentados em um tronco de gameleira que tinha a serventia de banco, o lugar recebera as toscas feições de arena. Anfiteatro medonho. O momento é tenso. A espera é preenchida com versos improvisados e outras modinhas aprendidas em tradicionais cantorias. Depois da breve reunião no interior da residência, vem a ordem intransferível: a morte será a fuzil. Lampião reaparece. Aproxima-se da estaca na qual fora amarrado Moreno e pede a seu lugar-tenente, cuja terrível atribuição já lhe havia sido passada, que escolha ângulo seguro de tiro. Posicionam-se e, exatamente às dez da noite, tendo Luísa sob salvo-conduto, o cearense, com os olhos presos à sua querida, é finalmente fuzilado pelo cangaceiro Chumbinho.
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A notícia correu mundo. Espalhou-se pelo nordeste.
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Por décadas e décadas, falou-se desse episódio. Era a conversa preferida da população sertaneja. O heroico bem-querer de Moreno por Luísa foi tema de muitos e calorosos debates. Diziam emocionados que a troca fora o último dengo do ex-cangaceiro à amada. Um jeito de dizer adeus. Uma “fineza de amor”.
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