quarta-feira, 15 de julho de 2009

O EQUÍVOCO - AS TRES RECAÍDAS DE UM CONVALESCENTE

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A narrativa seguinte faz parte do livro "Dias Sem Compaixão" e encerra crítica a excessiva violência hodierna.
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As Três Recaídas De Um Convalescente
Conto de Gouveia de Hélias
Colaboração: Marlene Noronha


As primeiras notícias eram vagas. Diziam de três rapazes encontrados mortos na frente da igreja da Sé... Talvez a não elucidação do massacre se devesse à famigerada lei do silêncio imposta pelos marginais. Sabia-se que era norte-rio-grandense um dos mortos e que foram três os assassinados. No entanto, naquela tarde agitada, quase mais nada se apurava sobre o crime. Como eu compilava dados para uma coletânea de contos, cujo assunto era a violência indiscriminada e a crescente desumanização e frieza, dirigi-me imediatamente ao local.

No percurso, ao subir a Ladeira General Carneiro, aproveitei para indagar sobre o caso; saber o que os traseuntes pensavam das mortes. Marreteiros que cochilavam sob as barracas chegaram a sugerir certas fontes. Não teria sido a polícia? Ou mesmo moradores de rua? Dois deles deram-me melhor atenção, apontaram em direção à Catedral e disseram que no átrio encontravam-se os três corpos lado a lado tombados.

Gritara de outra barraca, um menino:

– Um é norte-rio-grandense, senhor... o grandão!

Cheguei ao local indicado. Logo dava para perceber que dentre os tombados os dois mais jovens eram pichadores de muro. Estavam salpicados de tinta e ao seu lado encontravam-se moldes de letras vasadas. O terceiro, de maior envergadura, cujo documento o apontava como sendo do Rio Grande do Norte, estava de jaleco branco do tipo usado em instituições de saúde. Um pouco mais tarde, ter-se-ia conhecimento de que ele próprio havia sido o autor da chacina. Saíra de um tratamento psiquiátrico e no trajeto perseguira e assassinara os adolescentes.

OS LIAMES DO CRIME
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A Praça da Sé estava lotada. Curiosos aventavam mil teorias. Mas, somente, com a chegada de Beth Ferreira, noiva do norte-rio-grandense, os detalhes que nos contou tiveram o condão de elucidar a natureza real do massacre. Falara a moça de uma frase que o namorado julgara insultuosa pichada nos muros do metrô. Falara igualmente de um segredo seu jamais compartilhado com o noivo e outras pequeninas implicações que se tornaram vitais para o desenrrolar da tragédia... Mas, sigamos o roteiro e a sequência das horas que, segundo Beth, levaram ao violento desfecho.


À tarde, quinze horas.

Deixa o hospital o norte-rio-grandense. Certamente, por ter permanecido em longo tratamento, estar em liberdade enche-lhe de alegria. Entre a convalescença e a saúde seu estado é de inteira leveza e sobriedade. Pega carona até o Tatuapé e então toma o metrô. Seu destino é a Barra Funda, onde pretende procurar condução que o leve à residência de Beth.

Do assento ao lado da janela, abarca as distâncias por onde o trem passa. Lê outdoors e pichações com avidez. Foi logo na saída da estação, nos muros adiante, que viu pela primeira vez a frase pichada. Insulto a céu aberto, obsceno: “ELISABETH VAGABUMDA”. Vagabunda com M e aquele vandalismo inconsequente iria afetar sua imaginação como jamais se pensaria.

OS DOIS PICHADORES

Convém que sigamos, igualmente, o roteiro e a sequência das horas até a morte das duas vítimas do norte-rio-grandense.


À tarde, dezesseis horas e trinta minutos.

Na mesma hora em que o norte-rio-grandense deixa o Tatuapé, os irmãos Adauto e Adriano transitam pelo centro comercial de São Paulo. Sobem a ladeira General Carneiro, seguindo em busca da Sé. Haviam percorrido em um dia estafante de trabalho os muros marginais aos trilhos do metrô onde tinham se esmerado em uma pichação sistemática. Levavam consigo todo o material excedente: sprays, tinta e um molde de letras vazadas. Consideravam-se na verdade grafiteiros e o que faziam era “arte pura de rua”, baseados no orgulho e no espírito do pintor americano Basquiat... Pelo menos era o que imodestamente pensavam! Tinham fama, entretanto, de doarem-se a empreitadas malsãs. Pichações arrojadas pelo simples prazer do desafio. Sabia-se que escalavam alturas temerárias e a sigla AD2 (Adauto e Adriano) encontrava-se desde o Teatro Municipal, nos capitéis mais aéreos, até nos braços abertos do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro.

E aquela pichação? Seria por reles vingança? Despeito? Por infidelidade de alguma namorada: ofensa jamais permitida? O certo é que ELISABETH VAGABUMDA fora espalhada São Paulo afora e, até hoje, quem passar por aqueles muros ainda poderá avistar restos mal-apagados da frase, prosaico pivô da chacina.

Dezesseis horas e trinta e um minutos.

Ainda entre as estações Tatuapé e Belém, volta o norte-rio-grandense a varrer os muros com seu olhar abarcante. Há frases de toda ordem. Avista a viajar na velocidade do trem grafites e desenhos há muito relidos e reinterpretados. Passam por seus olhos outras tantas propagandas do universo caótico e mercantilista da música atual. "Tolices...miudezas! Forma fácil de se encher de dinheiro!". havia comentado em voz alta. Como tinha instrução universitária, achava seu dever não perder oportunidade de criticar o sistema. Como um calouro de faculdade, levava consigo a paixão de a tudo polemisar.

Um pouco mais adiante, avista pela segunda vez o acinte. Contundentes e imensos em sua grandeza pejorativa, os rabiscos derramavam-se vergonhosos nas paredes esburacadas do muro. Do romano ao gótico escreveram exaustivamente ELISABETH VAGABUMDA. “Vagabunda” grafada todas as vezes com M.

O TESTEMUNHO DOS PASSAGEIROS

Segundo relato mais tarde colhido, em um primeiro instante, o norte-rio-grandense gostara da rebeldia implícita no erro gritante da frase. Mostrara mesmo entusiastas simpatias por quem andava fazendo tal descaso da justeza linguística. O próprio Acordo Ortográfico – comentara, dirigindo-se ao passageiro mais próximo – não dera lugar a uma barafunda sem fim? Dizem que, nessa hora, o homem ao seu lado, nada entendendo da crítica que o irrequieto vizinho tecia, buscara melhor lugar no vagão.

Como se vê, até aquele momento, não fora o ultraje da pichação o que chamara a atenção do instável noivo de Beth. Era que os fios que separavam a convalescença da recaída ainda não haviam começado a ceder. Sua mente, entretanto, já deveria estar como um televisor antigo, ficando por momentos sem imagem, aos chuviscos.

A bem da verdade, e só mais tarde Beth nos contaria, ele não havia saído de uma casa de saúde comum. Fugira do Hospital Judiciário e Psiquiátrico de Franco da Rocha, depois de atacar um vigilante e apoderar-se de seu celular e revólver. Por três vezes ele iria recair naquela escapada. As patologias que o adoentavam, paranóia e fixação fantasiosa, que o condenaram a tratamento prolongado, naquela tarde leva-lo-iam aos assassinatos e a seguir ao suicídio... Mas, sigamos o roteiro e a sequência das horas daquela ocorrência sinistra.

A PRIMEIRA RECAÍDA: A FIXAÇÃO

O metrô continua veloz. No vagão, o norte-rio-grandense ouve anunciar a estação Bresser. Nas muretas, pelos paredões, continua a avistar ELISABETH VAGABUMDA escrita nos mesmos moldes, padrões mesmíssimos usados pelos pichadores. Ali começa sua primeira recaída. Aquela tendência a se entregar a visões fantasiosas: fixação pelas formas femininas. Desse modo, a frase se lhe apresenta como em um palco. Seus olhos adoentados vislumbram-na como uma esfuziante mulher. Consegue vê-la agitar-se numa dança erótica, num vulgar strip-tease. Ele vibra com a dança chula como aqueles voyuers empedernidos que frequentam salões escusos de becos licenciosos. Sua libido vai às alturas. Ora, a vê como dançarina de generoso perfil; ora, como fugidia ninfeta.

A SEGUNDA RECAÍDA

Mas, dá-se um intervalo entre recaída e lucidez e então o norte-rio-grandense desperta. Fora mesmo como se bruscamente acordasse! Daquele instante em diante, imbui-se da certeza, a par de uma mudança repentina de humor, de que a grosseria da pichação era dirigida à amada! Até a opulência da palavra VAGABUMDA, começara a compreender, aludia às nádegas arredondadas e adiposas de Beth... Com raiva, levanta-se! É nessa hora que passa da fantasia à paranóia, seu pior quadro clínico.

Dezesseis horas e trinta e sete minutos.

Incapaz de pensamentos razoáveis entrega-se a mil projeções. "Qual o motivo de tão perniciosa maldade?". "Qual o porquê daquela perseguição sem sentido?!". Certo de que a afronta era dirigida à amada, entre as estações Brás e Pedro II, resolve: na Sé desceria. Daria caça aos grafiteiros. ELISABETH VAGABUMDA ficara pelos muros num rastro visível: fácil seria seguir-lhes.

Estação Sé – Desembarque pelo lado esquerdo do trem”, é a voz eletrônica que leva o norte-rio-grandense a deixar imediatamente o vagão. Sua intuição o dirige. Ao subir as escadas rolantes, inicia a caçada. Devassa a praça da Sé com seu olhar tresloucado, sua esquizofrenia viera à tona, era a grande recaída. Estados patológicos podem induzir a uma força anormal, razão de seu frenesi. E seu objetivo daquele instante em diante seria limpar a honra da noiva. Assim, em cada esquina ele procura algum sinal que possa levá-lo aos rapazes. Observa. Vai ao marco zero, galga a base de mármore e faz uma varredura geral. De repente, ele os avista sentados nas escadarias da igreja. Por se encontrarem em meio a tintas e sprays, nenhuma dúvida o assalta. Aproxima-se e dá-se o inevitável: no escancarado da praça, com a cumplicidade de sua mente perturbada, num arrojo inconsciente e brutal, aponta-lhes o revólver e os abate. É fulminante o ato e imensa sua ira.

A TERCEIRA RECAÍDA

Depois do ato intempestivo, lembra-se do celular, e o telefonema que a seguir dirige a Beth deixa-a estarrecida. Ele fala á noiva, com detalhes, da fuga, do embarque no metrô, da pichação vergonhosa e do justiçamento à margem da lei, à luz do dia. “Executei-os! Estavam a chafurdar com teu nome! Fiz-te justiça, Elisabeth!

Beth paralizou-se ao ouvir a inacreditável confissão. Mais temerosa ficou ao ouvir que o noivo a chamara de Elisabeth. Histérica e aflita imediatamente entendeu o teor complicadíssimo do drama. Percebeu ter sido ele vítima de um terrível engano. A custo consegue sussurrar: "Fernando... amor, meu nome não é Elisabeth!". A seguir mostrara ao noivo o imenso equívoco: primeiro, que ela não se chamava Elisabeth! Seu nome era Yorkbeth, mas detestava, por isso escondera de todos! E, segundo, a frase que ele vira nos muros era tão-somente publicidade! São Paulo inteira havia sido tomada por aqueles cartazes! "Fernando, no hospital tu não vias televisão, querido?" Essa pergunta encerrava uma constatação dolorosa. A frase pichada na cidade, quem assistisse à televisão por aqueles dias saberia! Era propaganda! Chamadas para um show! ELISABETH VAGABUMDA era o título de um grupo musical feminino – de grande sucesso – que surgia.

Então – e isto é hipotético – ao olhar os corpos dos pichadores aos seus pés, por se encontrar no terreno perigoso entre a convalescença e a saúde, o norte-rio-grandense descamba para o suicídio, sua terceira e definitiva recaída.
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