Conto de Gouveia de Hélias
Colaboração: Marlene Noronha
Uma crítica à insensibilidade hodierna.
Um jornal distribuido nas estações de trem trazia a seguinte manchete: “Arremessada de uma composição em movimento, mais uma vítima de latrocínio. Desta vez, um mendigo. Um ancião...”.
Quem o viu no desenrolar do assalto dissera estar imensamente pálido. Canseira imensa o dobrava: aspecto acabado, judiado, doentio. Nem o fato de ser cego impedira de ser jogado para fora do trem. Ao embarcar para o trabalho, cotidianamente eu o via. Era homem entrado em dias, enrugado. Feições talhadas. Por ter herdado do bisavô, cantador nordestino, a nobre arte dos versos, fizera desse dom profissão; um meio de ir atravessando a existência. Costumeiro era vê-lo circulando pelos vagões inacessíveis, agitando uma bacia que servia para recolher os “agrados”. Todos gostavam de ouvi-lo. Suas emboladas versavam sobre a beleza do amor, sobre a virtude das atitudes gentis: um estímulo à amizade.
Então, em uma manhã, ao tomar o trem, notei a ausência do velho. Seus admiradores, irmãos de mesmo penar – vendedores de ninharias, pedintes e quinquilheiros – imediatamente mostraram-me o jornal que falava do vergonhoso homicídio. Li avidamente a notícia que dera detalhes repugnantes do fato...
Foi por volta de dez da noite. Chovia. O trem mal acabara de deixar a estação, quando se iniciou o assalto. Os ladrões progrediam no arrastão criminoso, carro a carro, e nessa modalidade – uma variação ousada – costumavam levar os parcos haveres das vítimas: ninharias banais, luxos mínimos do pobre, bugigangas baratas que eram frutos de miséria imensa.
Chegam ao vagão do triste desfecho. Avistam o cego. Quem o viu naquele dia dissera estar imensamente pálido e alquebrado. Agitava a bacia que usava para recolher a paga por suas astúcias rimadas, quando caiu sob o olhar de um dos componentes da gangue. “Vovô, vem cá!” Num salto, o bandido toma-lhe as moedas. “Agora que foi esvaziada a bacia, faz a recolha pros manos! Vai logo!”. Exigia que o ancião percorresse o vagão, recolhendo os frutos do butim, coisa que o cego imediatamente refuga. Com sua recusa, o marginal o obriga a comparecer diante do líder da gangue. Arrasta-o aos gritos. Tal covardia ficaria gravada na memória de todos que se encontravam presentes. Em frente a Pivete, rapagão que comandava o assalto, o ceguinho reitera sua decisão de não prestar serviços ao grupo, e é desrespeitosamente espancado. Uma garota que também fazia parte do bando aponta um revólver às pessoas presentes, fazendo constantes e insistentes ameaças. Ao ver o terror que a menina começara a espalhar entre os passageiros, Pivete dá condescendentes risadas. Abraça-a e inicia um “repe”, cujos versos elogiam as ousadas incursões dos companheiros, no que chama de “ganha-pão e atividade dos manos”. No mesmo instante comprenetra-se e volta a encarar o cego, ordenando que fosse às vítimas e recolhesse celulares, brincos e anéis...
Mas dá-se o inevitável. As negativas do nordestino são em sextilhas, improvisos brilhantes, e essa ligeireza mental os ladrões a tomam como um desafio. Incomoda-os o concerto de versos construídos em engenharia perfeita. Comentou-se depois que a precipitação da tragédia se deveu muito ao fato de Pivete ter-se irritado ao constatar a superioridade daquelas rimas comparada à miudeza dos “repes” que costumava exibir aos amigos. Tanto quanto os improvisos, a inteireza do nordestino incomoda os marginais. “Paraíba, honestidade é coisa para jacu, não dá camisa a ninguém! Vai ou não vai fazer a coleta pros manos?!”.
Mesmo em face à teimosia do ancião, os componentes da quadrilha, ainda que em entendimento tácito já o tivessem condenado à morte, retardam o desfecho. De Kelly havia partido a ideia fatal: atirá-lo para fora do trem. Mas, primeiro desejam dobrá-lo. Pressionam-no. O cego que é homem de princípios, não cede. Dos passageiros que se encontram sob mira ele procura um resfolegar conhecido. Lembranças em sua mente afloram. Não fora ali, naquele mesmo vagão, que fizera um turbilhão de amigos? Não fora ali, quando arquitetara ligeiros e variados repentes, que fora ovacionado...? Mas a voz eletrônica, anunciando a próxima parada, o traz ao centro da ação. “Cego?!” Pivete o chama. Embora houvesse se esgotado o tempo, uma oportunidade, a derradeira, resolvem que irão conceder. “Cego?! Vamos te dar mais uma chance. Agora, de uma vez por todas: vai ou não vai fazer a correria pros manos?”
A recusa rimada que a voz do nordestino solta grave, calma e decidida faz, enfim, os assaltantes precipitarem a ação. Derrubam-no. Com um dos joelhos sobre o peito do ancião, Pivete o questiona: “Cego, para que tanto orgulho se não tens nada na vida?!”. A seguir, segurando-o pelas mãos e pelos pés e balançando-o em pêndulo, a gangue o lança janela afora. Praticam o ato imenso em meio às risadas. Sem respeito. Sem comoção. Sem compaixão nenhuma.
Dizem que ao ser questionado por Pivete, Adamastor Roldão o havia calado com o seguinte improviso: “Rude, cego e iletrado, sem vintém e sem xerém. Uma coisa me consola, tenho o que muitos não têm: do homem, a boa amizade; da mulher, o querer-bem”.
Morreu como viveu, cego Adamastor Roldão, à luz de seus princípios!
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