A História de Amor de COEME e MAIARY
Aconteceu entre os povos do Alto Xingu, na planície do Morená; uma região reservada aos espíritos...
Coeme, o jovem kamaiurá, vivia triste por temer jamais experimentar as alegrias do amor, devido ser frágil e não apresentar um corpo avantajado e guerreiro. Porém, no dia em que a aldeia celebrou o final de sua puberdade, Inapê, o velho pajé, depois dos transes e consultas às entidades do Morená, trouxera-lhe feliz vaticínio: “Alegre-se! No dissipar das águas, pela safra dos pequizeiros, Coeme encontrará sua alma-irmã! Flores em abundância enfeitarão o dia especial de Coeme!”
Ao chegar o final das chuvas, toda a gente kamaiurá fora convidada para a festa do pequi na aldeia dos kuikuros e foi nessa ocasião que se confirmou o que vaticinara Inapê: Coeme conheceu Maiary. Magicamente, ao redor da taba, as quatro estações do ano processaram-se de uma só vez: ipês e manipuçás cobriram-se barulhentamente de flores. Na parte da manhã, houve pajelança e celebração aos passarinhos que anunciavam as boas safras do pequi e Coeme fizera par com Maiary. Na praça da aldeia, transcorria a festa de agradecimento pela abundante colheita e nos intervalos entre as danças, os dois namorados conversavam e riam. Mas sabiam que ao chegar a tarde teriam que se separar. Para kuikuros e kamaiurá, embora as animosidades de outrora houvessem sido esquecidas, uma proibição persistira: nenhuma união duradoura poderia existir entre os membros das duas tribos. E kuikuros e kamaiurá jamais desrespeitaram tal regra. Cientes dessa proibição, Coeme e Maiary resolveram viver naquele dia toda a eternidade possível. Detalhe por detalhe, as características do rosto sereno da moça ele as decorou e celebrou; fez juras de nunca mais esquecer. O perfume que se desprendia dos cabelos da namorada, que lembrava ora o cerne da gameleira, ora a essência da ananã, inebriou o kamaiurá; ensejou que ela lhe revelasse um segredo: “Quando a lua cheia aflorar entre as árvores, que indicará a safra das ananãs aromáticas, eu irei ao Morená proibido.” Coeme viu na confidência de Maiary um convite para um reencontro futuro.
Com gritos que traduziam satisfação e amizade, ao findar a festa, os kamaiurá deixam os kuikuros. No aceiro da taba, Coeme ainda se voltou e experimentou os derradeiros aromas exalados por Maiary. Mas, à medida que se distanciava da aldeia e penetrava o nevoeiro, via as distâncias lhe roubarem as fragrâncias tão cuidadosamente guardadas.
Nos dias que se seguiram, os kamaiurá compadecidos preocupavam-se com a tristeza de Coeme. Inaquê, o velho pajé, entendedor da natureza em transição do adolescente, acalmava seu povo: “Deixem Coeme! Os bons espíritos lhe concederão o esquecimento.” A par das saudades, seu corpo franzino, que estava longe de revestir-se da resistência guerreira, propiciava ainda mais desalentos. Algumas vezes, laivos de um contentamento inconstante lhe invadiam a alma, – reduzidas emoções de sentimentos fugazes – mas, somente quando se embrenhava na mata. No meio da floresta densa seu coração se apaziguava. Olhos e mente se compraziam na abastança do verde. O quebrar da folha d’água dos mansos igarapés levava-o à paz momentânea. No mais, em sua insatisfação sem jeito, tudo tinha a insalubridade do inverno. Andava, andava, o mato era seu lenitivo. Mas, a tarde tão esperada chegou! Aflorou a lua cheia entre as árvores; era a época das ananãs perfumadas. Na manhã seguinte, quando toda a sua gente ainda se resguardava da umidade do nevoeiro, Coeme enfeitou-se com seu cocar mais vistoso e partiu para o Morená. Ao encontrar-se na planície sagrada, andou, andou até que ouviu o transpirar do caudaloso Coluene. Quedou-se, passou horas a observar o intransponível estuário. Reconheceu no outro lado do rio, no começo do território kuikuro, a plantação de ananãs aromáticas, mas não avistou Maiary. Esperou toda a tarde. Ao cair da noite, voltou desconsolado à aldeia. Por sete luas retornaria às barrancas...
Foi somente por ocasião da grande enchente que abarrotou o rio Coluene – já na oitava lua – que Coeme viu configurar-se a silhueta de Maiary. O perfume que se desprendia dos cabelos da garota kuikuro chegou à margem onde se encontrava o rapaz e a emoção dominou suas almas. Através de acenos, comungaram todos os sentimentos da mata e, igual ao dia em que se conheceram na aldeia, ipês e manipuçás cobriram-se magicamente de flores. Separados pela grande enchente, permaneceram por toda tarde numa contemplação desmedida... Imaginam os xinguanos que foi ao chegar a noitinha, no momento de se dizerem adeus, que Coeme e Maiary tiveram o pensamento em comum de não mais retornarem sozinhos aos seus lares! Porém, um dilema se lhes apresentara ao pensarem na regra ancestral que proibia a união entre membros das duas tribos. Imagina-se então que foi frente a esse dilema que optaram por morrer juntos, único passo capaz de lhes juntar para sempre. Em um imperceptível impulso, pulam e, enquanto se entregam às forças vorazes da correnteza, acontece o que os povos da floresta iriam denominar de intervenção dos espíritos: uma força bondosa surgida do Morená barra repentinamente o estuário. Naquele instante, os redemoinhos tornaram-se brandos e Coeme e Maiary foram poupados e tiveram seus corpos mudados para que pudessem boiar e assim viver sua proibida união sobre as águas...
Hoje quem visitar o Alto Xingu, no trecho onde o Coluene se alarga, separando o território Kuikuro do território Kamaiurá, há de ver Coeme e Maiary: ele transformado em ágil e soberbo guerreiro, ela como flor bela e viçosa, a imponente vitória-régia. Ver-se-á Coeme indiferente às intempéries ondular suave em imperceptíveis remansos. Fascinado, ele não para de olhar para a flor que enfeita e perfuma as águas serenas do rio.
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