LIGEIRA INTRODUÇÃO: Aucélia, sobrinha do Gouveia, da última vez que veio de Fortaleza nos visitar, trouxe-nos este texto manuscrito, desbotado pelo tempo, que fora encontrado nos guardados da família. Resolvi transcrevê-lo “ipsis litteris”, mantendo inclusive eventuais erros, pois espelham a idade e a fase escolar do autor, que era apenas um menino, à época. Quando o escreveu, estava gozando suas primeiras férias, após ingressar no Seminário Menor Arquidiocesano de Fortaleza. Já denunciava, no entanto, o que seria quando crescesse: aquele menino é hoje o escritor Gouveia de Hélias. (Marlene Noronha)
“UM ROÇADO VERDINHO LÁ NA SERRA
De calças curtas, pé no chão, eu era feliz como o são os meninos pobres sem ilusões: um dia seria grande e teria verdinho lá na serra um roçado bem maior que o de papai. O tempo corria e eu brincava pelas mangueiras vendo o rio correr indiferente e calmo por entre as pedras. Quase não percebia que ia crescendo e já não brincava só. Não sei, no entanto, de onde apareceu aquela minha companheira que as vezes me chamava de “tio”. Era uma pequena travessa e inteligente que me irritava com suas garrulices dengosas. Foi bonito o meu sonho de menino pobre. Nosso reino era as sombras das mangueiras, cada tronco guarda um pouco daquela infância que deixamos esquecida.
Fomos crescendo. Eu já entendia então que o céu não mais encostava nas serras embora minha amiguinha não se convencesse: um dia, uma menina apareceu lá por casa. Vinha, dizia ela, da “cidade grande” “lá havia carros bonitos” “nas noites de Natal um bom velhinho barbudo dava presentes.” Olhei para minha sobrinha. Como gostaríamos de ver um carro de perto. Aqui raramente passava na estrada, mas apesar de subirmos no genipapeiro da cozinha só conseguíamos ouvir o barulho. E papai Noel? Esse nunca esperamos. Sentíamos que o tal velhinho não gostava mesmo dos meninos pobres da serra. Havia por aqui um velhinho o “Maximiano”, mas esse coitado ainda que papai Noel da cidade o quisesse como representante nessas brenhas, ele não poderia ao menos com o saco de presentes.
Vivemos assim sem papai Noel, sem presentes, sem Natal. Os dias passavam-se. Dei preferência à menina que tinha visto coisas bonitas e morava na cidade grande. A outra a que por primeiro unira-se a mim para vencermos a solidão de uma infância sem brinquedos e sem companheiros, essa, nas nossas brincadeiras seria então, apenas vizinha numa casinha que eu engendrara de mau gosto, distante, bem distante da nossa. Hoje somos grandes. Tive de partir para um mundo conquistar nem sei pra que. Já não gosto da cidade grande, mas aprendi a fingir, tudo porque fui além de ‘um roçado verdinho lá na serra’ ...”
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